quinta-feira, 2 de agosto de 2012

No Fio da Navalha


A imagem no espelho pouco me agradava. Se por um lado os cabelos incomodavam pelo volume exagerado, cultivado pela preguiça e pelo alcoolismo, a barba falha parecia vegetação do agreste brasileiro: rala, pequena e esporádica. Nada bonito. Foda-se também, não tinha pra que estar bonito. Aliás, quem foi que definiu o que é bonito? Mas o fato é que eu me incomodava. Peguei as chaves, entrei no carro e fui até a barbearia dar um fim aquilo. O ambiente era típico de uma barbearia. Portas de vidro, iluminação abundante, ventilador de teto girando lentamente, bancos em madeira precariamente estofados, ocupados por velhos aposentados e descompromissados, lendo jornais do dia, revistas do mês anterior e conversando sobre assuntos do século passado, apenas aguardando a hora de comprar pão para o café da tarde. Acho que é a única coisa que importa o final, a hora do pão, do jornal, do remédio e da morte. O barbeiro, Sr. Machado, chamado de Seu Machado, estava desocupado. Era um senhor, já no auge dos seus quase setenta anos, estatura baixa, óculos fundo de garrafa, calça cargo e camisa social, barriga colossal, ranzinza embora de poucas palavras, mas extremamente habilidoso na arte do aparo de pelos. Seu Machado me fez um sinal para que eu me sentasse, o que eu fiz cumprimentando-o com aquele aceno de cabeça em sentido positivo, que inclui todas as formalidades possíveis - "Oi, tudo bem?", "Ah, tudo certo também" - em um único gesto. Questionado sobre o corte, disse a Seu Machado que seria "o de sempre". Ele prontamente iniciou o trabalho e, não muito depois, o serviço já estava concluído. Preparava-me para levantar-me quando Seu Machado perguntou:
       - Não quer fazer a barba?
       - Ah não - respondi - não precisa não.
       - Se quiser, faço de graça pra você, o que acha?
Nunca havia feito a barba na barbearia, por mais irônico que essas palavras possam parecer - e nunca tornei a fazer após aquele dia - e de fato, estava uma merda. Pensei, "de graça, qual o problema?" e aceitei a proposta. Seu Machado acenou, chamando alguém, e do corredor surgiu um rapaz que, não demoraria muito, eu descobriria ser o problema. Era um rapaz magricela, esguio, cabelos bem curtos de cor avermelhada. O rosto era marcado com centenas de pequenas manchas típicas nos nascidos ruivos. Era difícil julgar sua idade. Poderia ter pouco mais de vinte anos ou já estar na casa dos quarenta, mas a insegurança e a forma deselegante como a roupa social lhe caía - e elas ficam facilmente deselegantes nos jovens - me fazem acreditar que não chegava aos trinta. Seu Machado me comunicou que ele quem faria o serviço e não vi problema até ser tarde demais, quando Machado começou a orientá-lo e caiu a ficha de que o indivíduo era um aprendiz. O rapaz inclinou minha poltrona e aplicou o creme para barbear em minha face. Afastou-se até o balcão próximo e começou a preparar a navalha para o serviço, substituindo a lâmina por uma lacrada. E então, sem sutileza ou habilidade alguma, a lâmina fria encontrou minha pele pouco abaixo do olho direito e descreveu o primeiro dos incontáveis e intermináveis arcos de corte. O terror começou quando a mente começou a divagar sobre aquela situação. Ali, sentado em uma cadeira inclinada, com uma luz ofuscante sobre os olhos, e a imagem de um homem desconhecido com uma navalha na mão aproximando-a da minha face em movimentos imprecisos e inseguros, a sensação era similar à de estar sobre uma mesa de cirurgia, só que o cirurgião, não tinha a menor ideia do que estava fazendo. Sobre minha pele ligeiramente espinhosa, a lâmina percorria caminhos tortuosos enquanto o rapaz tentava desviar das protuberâncias que certamente causariam sangramento. O rubor e o calor subiam à minha face à medida que o metal raspava repetidamente os mesmos locais, aumentando o desconforto e a tensão. Era interminável. O pior ainda estava por vir, quando o objeto afiado finalmente encontrou meu pescoço. Sobre as rígidas formações da traqueia e do pomo-de-adão, era possível perceber milímetro a milímetro a pressão inconstante exercida pela lâmina. Como era possível se submeter a isso? Ter a vida nas mãos de outro homem por tão pouco. Ter a vida no fio da navalha. Um pequeno erro, um descuido, uma força a mais, um esbarrão, uma picada de inseto, qualquer coisa, e a tragédia seria inevitável. Era como estar sentado à cadeira de Sweeney Todd, o barbeiro demoníaco. Não tardou até que o sangue vertesse através do buraco de uma espinha acidentalmente retalhada e o vermelho preenchesse o branco do creme de barbear, alimentando o devaneio.  A respiração cessou com a sensação de dor imprimida pelo corte, meus punhos se cerraram sobre os braços da cadeira, a mão do barbeiro enrijeceu e a expressão misturada de surpresa e culpa subiu à face do rapaz, moldando-a na cara de quem fez merda.
Aí a voz de Seu Machado voltou a ecoar no recinto, esbravejando, perguntando se o rapaz era médico para arrancar pedaço dos outros, enquanto tomava a ferramenta das mãos do aprendiz para terminar o serviço, o que para mim, foi um alívio. Pouco tempo depois, abandonei a barbearia sob pedidos de desculpas por parte do Sr. Machado, entrei no carro e rumei para casa. No caminho, vi pessoas confiarem suas vidas a motoristas de ônibus, taxistas, pilotos de avião, fabricantes de automóveis, barbeiros. Nunca entendi de verdade esses aspectos das relações sociais da raça humana, essa confiança subconsciente que depositamos no próximo mesmo sabendo que o outro é tão humano quanto nós e, portanto, falho. É incrível como, com um senso de autopreservação tão deturpado, a espécie tenha perpetuado ao longo dos anos. Somos todos suicidas. Estamos todos vivendo no fio da navalha.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

A lista


            A hora se arrastava junto com a aula. Vagarosa e incerta, como se estivesse perdida. Os ponteiros dos segundos e dos minutos hesitavam em moverem-se. Pareciam não saber se avançavam no sentido horário ou se retrocediam e a sensação era de que o intervalo entre oito e nove horas da noite já perdurava por mais de três horas. Ou meu relógio havia parado? Chequei o celular. Mesma coisa. Analógico e digital – e talvez até o atômico. – compactuavam com aquela tortura. Tortura? Não. Estava mais para um teste de paciência. “Você tem bagos?” - O relógio perguntava. “Você tem bagos?” - O celular perguntava. Você tem culhões? – A professora perguntava. “Você tem paciência?” – Deus perguntava. Alguém passou no corredor com um livro de biologia debaixo do braço. “Você tem bolsa escrotal?”
            Ironicamente, embora a hora avançasse como uma tartaruga despreocupada, ao mesmo tempo se aproximava do limiar de horário no qual era de meu interesse ir embora dalí. Não que eu não pudesse sair, mas por motivos acadêmicos que não valem apena serem explicados, tinha que esperar para marcar presença. Passasse das nove horas e dez minutos, seria obrigado a permanecer até às dez a espera de um trem. A espera do trem é como uma fila de circo. O trem no Rio de Janeiro não passa disso: Um circo. Desde a mulher barbada até um bando de animais em exibição te oferecendo seu conceito de diversão barata. Um show bizarro, nada agradável. A diferença, é que no Trem-Circo o palhaço é você.
            Eram oito e quarenta e cinco quando a professora, em um gesto de piedade ou simplesmente seguindo a rotina, entregou ao primeiro aluno da fileira do canto esquerdo da sala uma folha de caderno pautada, para que cada aluno escrevesse seu nome, confirmando assim sua presença. Era só o que eu precisava. Mas o teste de paciência ainda estava sendo aplicado sobre mim, e para minha infelicidade, eu estava sentado na segunda fileira, a partir do canto direito da sala. Sete fileiras me separavam da lista. Em um rápido e aproximado cálculo mental, imaginei que em cerca de dez minutos a lista chegaria até mim, e com ela meu alvará de soltura daquela tortura. Mas foi ai que tudo mudou. Em um piscar de olhos o ponteiro dos minutos havia avançado um doze avos das frações do relógio, levando embora cinco minutos. Era como se Cronos tivesse percebido a anomalia temporal que fazia com que o tempo estivesse correndo com lentidão e resolvido compensar as coisas. Hora errada Cronos. Ou era isso, ou o restante das pessoas naquela sala eram simplesmente lentas demais e incompetentes demais, incapazes de escrever seus próprios nomes em uma velocidade plausível para um ser humano. Como não acredito em Cronos, fiquei com a segunda opção. Talvez não fosse culpa deles. Dos alunos. A maioria provavelmente estava prestando atenção à aula, tornando o preenchimento da lista uma atividade secundária. A agonia do momento me fez devanear sobre todas as listas que já havia assinado, e todas as chamadas que já havia aguardado. As chamadas orais eram piores. R. Porque tinha que ocupar uma posição tão distante no alfabeto? No aguardo ainda tinha que ouvir nomes que pareciam inventados com o único objetivo de burlar a ordem da chamada. Eginaldo. Quem foi que tirou o R dalí?! Periandro? Arquimedes? Pelo amor de Deus, homenagens têm limites. Em meio a tantos nomes ridículos, não me importaria de me chamar simplesmente A B da silva C. Mas meus pais preferiram Renato. Lá fora o vento parecia um bêbado, incapaz de se mover em uma única direção. Junto a isso, esfriava e a noite se tornava mais cinzenta. Talvez chovesse mais tarde. Enquanto isso, a lista lutava para me alcançar. Chegou até mim cinco minutos depois do limite e dez minutos mais tarde a aula havia terminado. Tirei um “Raymond Chandler” da mochila e entrei na fila, do circo e da chuva.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Eu Só Trabalho Aqui

             Desci do carro e caminhei lentamente pela rua escura. Eram onze da noite e os únicos movimentos na rua eram os meus e os das folhas movendo-se na dança do vento gélido. Parei em frente aos portões de grades verdes da casa vinte e cinco e toquei a campainha. Era uma casa não muito grande e não muito pequena. A coloração das grades indicava terem sido recém pintadas, assim como as paredes brancas da casa. A porta de madeira se abriu mais a frente e a luz incandescente da varanda se acendeu, revelando o morador. Um homem de feições fortes, trajando uma jaqueta de couro marrom, uma camisa branca por baixo e calças jeans. Ele cruzou os jardins até o portão e me cumprimentou enquanto abria o mesmo.
            - E ai Marcinho. Tudo tranqüilo?
            - Tudo de boa. - Respondi.
            - Entra ai que ta um frio do caralho.
            - Eu que sei.
            Avançamos pelos jardins e adentramos na casa. Bruno já era um cliente de longa data e eu até sabia alguma coisa da vida dele. O cara era um engenheiro, trabalhava com projetos de unidades petroquímicas. Devia ser legal. A situação financeira era boa. Nenhum luxo, mas o cara tinha bom gosto. O corredor de entrada terminava em uma sala espaçosa toda em preto e branco.
            - Guenta ai. - Falou disparando por um lance de escadas do outro lado da sala. Não demorou muito. Voltou se jogando sentado no braço do sofá e me indicando um lugar no sofá oposto.
            - Senta ai.
            - To tranqüilo. Não posso me demorar muito.
            - Saquei. Então, conseguiu a parada?
            - Sim.
            Encaminhei-me em direção a mesa que ficava entre a sala e a entrada da cozinha. Joguei o papelote branco sobre a escura mesa de mogno e tornei a colocar as mãos para dentro dos bolsos da jaqueta. Estava frio. Ele olhou firme para o pacote, analisando de longe, e retrucou:
            - Não foi isso que a gente combinou.
            - Foi o que deu pra arranjar. - Falei.
            - Não fode comigo Marcinho, tu sabe que isso ai não vai durar nem uma semana.
            Dei de ombros e repeti da mesma forma, como um gravador tocando a mesma faixa.
            - Foi o que deu pra arranjar.
            Ele respirou fundo, levantou-se do braço do sofá e cruzou a sala até a mesa onde deixei a droga. Pegou o papelote e ficou analisando a consistência através do plástico que a envolvia. Esses vagabundos sempre acham que estamos passando a perna neles. Largou o papelote e deu a volta na mesa, apoiando-se de costas na mesma. Cruzou as pernas e tirou um cigarro do bolso. Com um gesto rápido alcancei-lhe um isqueiro aceso. Ele deu uma tremida assustando-se de leve, mas aceitou o fogo. Sou bom com meus clientes. Fiquei ali, o observando tragar o cigarro e em seguida soltar a espessa fumaça em minha direção, com um sorriso de canto de boca. Odeio isso. Não tenho problemas com cigarro, mas isso é tática de vagabundo pra obstruir nossa visão quando querem fazer alguma merda.
            - Já falei pra não jogar isso em minha direção. - repreendi.
            - E eu tinha dito que queria um quilo da parada.
            - Foi o que deu pra arranjar. - Repeti. Sabia que ia ficar puto.
            - Você só sabe repetir essa merda?
            - Eu só trabalho aqui.
            - É a terceira vez que tu me faz isso.
            - E é a terceira vez que te falo que com o valor que tu me disse, é o que dá pra arrumar. Desde que começou essa ocupação da polícia os caras querem a parte deles pra liberar o bagulho. O preço subiu.
            - Percebi. Mas achei que era por causa da alta do dólar. - ele riu sarcástico. Eu não.
            - O dólar está em baixa...
            Ele tragou mais uma vez o cigarro, mas dessa vez jogou a fumaça para o alto. Deu a volta na mesa de novo olhando pro pacote.
            - Quanto tem ai?
            - Setecentas gramas.
            - Setecentos.
            - Isso que eu disse.
            - Você disse setecentas. O Correto é setecentos. No masculino. Não tem mato nessa porra.
            - Que se foda.
            - Que houve cara? Está um puta ranzinza hoje. A Mulher dormiu de calça?
            - Só quero resolver logo isso, ainda tenho mais gente pra visitar.
            - Bebida?
            - Não, obrigado.
            Ele foi em direção à cozinha, e ficou falando de lá.
            - Sabe o que é Marcinho, essa parada nem é pra mim. Uns parceiros me pediram pra arrumar, e eu falei que conseguia um quilo com o que me deram. Se eu aparecer com setecentos vão achar que eu to passando a perna neles.
            - Não vão não. São teus parceiros, conta pra eles o que te contei.
            - Até parece que não conhece vagabundo, né cara? - disse voltando da cozinha com um copo de Uísque na mão. Pela cara já tinha virado um por lá mesmo. - Quebra essa pra mim mano, to te arrumando novos clientes.
            - Não vai dar. Os caras tão esperando o arrego e eu não tenho do meu pra tirar. Se tivesse me contado essa história antes eu mandava o papo nos caras.
            Ele tomou mais um gole, olhou pro fundo do copo, e finalizou a bebida. Largou o copo sobre a mesa e deu mais uma tragada, mantendo o cigarro na boca com os lábios. Enfiou a mão no bolso da calça e tirou um maço de notas. Em seguida contou as mesmas de maneira que não pude ver e largou sobre a mesa, do lado do pacote.
            - Ta ai cara.
            Aproximei-me da mesa, peguei o maço e iniciei a contagem, observando o bastardo com a visão periférica. Tinha menos. Por que diabos não podia ser uma noite tranqüila de negócios? Olhei pra ele cerrando os olhos.
            - Porra é essa?
            - Vamos fazer assim cara, nem pra mim nem pra você. Eu devolvo uma parte pros caras e digo a parada do arrego, fica mais fácil de acreditarem.
            - Já disse que não rola.
            Larguei o maço sobre a mesa novamente e estendi a mão para pegar o pacote de volta. O chato da bebida é isso. O cara bebe, fica se achando senhor do mundo, e perde a noção das coisas. Ele alcançou meu braço, me segurando pelo pulso na tentativa de deter minha mão e começou a dizer alguma coisa. Não quis saber. Num movimento rápido acertei-lhe um soco de esquerda na têmpora, que abriu imediatamente. Dei a brecha pra que processasse a informação que meu soco carregava, de que eu não estava pra brincadeira, mas o patife achou melhor revidar. Puxou meu braço me fazendo bater na mesa na tentativa de me desequilibrar. Erro meu. Erro dele. Repeti o golpe de esquerda e ele ficou atordoado, largando meu pulso e cambaleando pra trás.
            - Seu filho da puta! - Esbravejei.
            Parti pra cima dele dando a volta na mesa. Ele tentou me acertar com a direita mas eu consegui evitar o soco. O bom da bebida é isso. Eles sempre ficam mais lentos. Segurei o braço dele antes que ele o retraísse e puxei-o na minha direção, elevando meu joelho na altura de seu estômago. Queria poder tirar uma foto cada vez que isso acontece. Eles abaixam tentando proteger a barriga enquanto os olhos esbugalham e a boca se contorce. O sangue se concentra na face, deixando-a avermelhada e as veias saltam do pescoço e da testa, dando o toque final na careta. A cena se completa com o grunhido rouco procurando o ar perdido. Se bem que o grunhido não sairia na foto... Bem, podia ser um vídeo, sem o grunhido, não tem graça. Segurei-o pela lapela da jaqueta e o arremessei sobre a mesa de centro da sala. O vidro se quebrou e o som agudo preencheu a sala, sendo seguido pelo silêncio. Caminhei em direção à mesa onde estava a droga e o dinheiro. Peguei a droga e fui saindo. Vi o cara se arrastando na sala, mas não dei bola. Já perto do corredor de saída escutei o já conhecido clique e me detive. O filho da puta apontava um revolver para mim. É assim agora. Você vai, viola não sei quantas leis pra poder ganhar um trocado, enquanto esses babacas só querem saber de cheirar. Ao invés de me agradecer o cara me aponta uma arma. Eu já estava ficando de saco cheio daquilo. Virei-me pro cara que empunhava o revólver com a mão esquerda enquanto verificava o sangramento na têmpora direita. A arma tremia e eu sabia que, se atirasse, ele erraria.
            - Porra Marcinho! Achei que a gente fosse parceiro!
            - Eu só trabalho aqui. Enquanto estou te vendendo essa porra aqui eu sou um negociante. É meu rabo que fica na reta lá no morro se eu não aparecer com a grana. Daí você não quer me pagar, eu não quero vender, é simples assim. Agora você me aponta uma arma e eu te pergunto, vai fazer o que?
            - Deixa essa porra ai, pega a grana e mete o pé. Amanhã eu te ligo, a gente marca e eu te dou o resto. A situação é complicada, eu to devendo essa porra pruns caras e o meu ta na reta. Eu sei que tu consegue driblar os caras até amanhã.
            Nesse ramo é assim. Tanto a gente quanto os vagabundos, ninguém tem amigos, são todos conhecidos. Na hora que a coisa aperta cada um só pensa no seu. Eu podia sim segurar as pontas com os homens. Podia ajudar o cara, afinal, é meu cliente há anos. Mas de repente eu não senti firmeza nele, e se tem uma coisa que a gente aprende cedo, é não confiar em viciado. Primeiro a gente tenta manter uma relação de respeito. Pra gente que negocia com os marmanjos da classe média, é mais vantajoso fazer isso do que aplicar a política do medo. A gente ganha mais. Mas quando a situação chega ao ponto em que essa chegou, não tem mais jeito.
            - Tu vacilou Brunão. E feio. Agora eu vou te dizer o que vai acontecer. Ou eu saio daqui com o dinheiro todo, ou saio com a parada. Você pode puxar o gatilho se quiser, mas é bom você acertar, e se acertar, é bom correr e cheirar tudo que puder, por que os caras lá fora vão garantir que seja a última coisa que você vai cheirar. Se você tinha um problema, você me procurava, e não me aprontava uma dessas.
            - Puta merda! É situação de vida ou morte cara, tu tem que me ajudar.
            - Agora tu pede minha ajuda?! Primeiro tenta dar uma de espertinho, depois aponta um caralho de um trabuco pra mim, e agora pede minha ajuda?
            - Foi mau cara, eu to com o cu na mão. Ok, sem armas. Sem exaltação.
            Ele abaixou o revolver e largou no sofá, andando em direção a mesa. E fazendo caretas enquanto tentava parar o sangramento na têmpora. Deu pena do sujeito, resolvi tentar ajudar o cara.
            - Quem são os caras? - Perguntei.
            - Uns caras lá da Lapa.
            - Isso não ajuda muito. A Lapa é área de livre comércio. Pode até ser dos nossos.
            - Não era não. Pelo que eu entendi tão ligados com um tal de Valter Negrão. Não sei se é sério ou se era balela. Me lembrei daquele ator.
            - É um trocadilho mesmo, mas esse é negrão de verdade. É do Macaco.
            - E ai? Qual vai ser?
            - Seguinte. Tu me dá a grana, por que eu dependo dela pra desenrolar com os homens. Vou usar o valor pra negociar os outros trezentos e vou contigo falar com os caras.
            - Acha que vai dar certo?
            - E quando foi que não deu certo comigo Brunão? - Disse abrindo os braços e fingindo um sorriso amistoso. Ele cuspiu um sorriso e pegou o resto da grana, colocando as notas junto das que estavam na mesa. Aproximei-me e depositei a droga sobre a mesa novamente. Em seguida peguei o dinheiro e fiz a contagem. Dessa vez estava certo. Dobrei o maço e guardei no bolso traseiro da calça.
            - Então fica combinado assim? Por favor cara, me ajuda nessa que eu fico te devendo uma.
            - Xácomigo.
            - Então, sem ressentimentos? - Ele disse me estendendo a mão direita.
            - Sem ressentimentos. - Respondi.
            Sem ressentimentos era o caralho. Completei o aperto de mão puxando-o novamente, passando para trás dele e torcendo seu braço em uma chave de braço. Chutei a lateral de seu joelho direito, levando-o ao chão em meio a um urro de dor. Não sei se quebrou, ou se torceu. Nem ligo. Passei o braço esquerdo em torno de seu pescoço, puxando seu corpo contra o meu, sufocando-o em uma gravata. Ele tremia buscando ar. Soltei o braço direito e busquei a pistola que ficava presa a minha cintura entre a calça e a cueca. Tirei a trava e passei o braço pra frente apontando a pistola para seu nariz, tocando-o com a superfície fria do cano.
            - Mas se apontar uma arma pra mim de novo, te garanto esse cano vai ser a última coisa que você vai cheirar. E vai ser a maior viajem. Sem volta é claro. Entendido?
            Afrouxei um pouco o aperto no pescoço e ele maneou a cabeça positivamente. Larguei o corpo pesado no chão e me mandei. Lá fora acendi um cigarro e me dirigi ao Honda Civic preto estacionado na esquina ao fim da rua. Parei ao lado da porta do carona e as luzes se acenderam. Dei uma última tragada e joguei o cigarro fora. Não fumo dentro do carro. Entrei e depositei a arma sobre o porta luvas.
            - E ai, foi tranqüilo?
            - Tudo certo Miltão. Vamo nessa. - Dei uma olhada no relógio enquanto o carro entrava em movimento.
            - Quem é o próximo? - Perguntei.
            - Laércio. Lá no Leblon.
            - To ligado. Quanto ele pediu dessa vez?
            - Um e meio.
            - Esses caras só pioram.
            Abri o porta luvas do carro e chequei o estoque. Três quilos. Separei dois pacotes de meio quilo e um outro menor.
            - Pena que só deu pra arrumar um e duzentos. - Falei sorrindo e olhando para o Miltão, que me devolveu o olhar.
            - Você é mesmo um filho da puta - Me disse sorrindo.
            - Que nada Miltão. Eu só trabalho aqui.
Explodimos em uma gargalhada enquanto o carro avançava noite adentro rumo ao Leblon.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Rotina

Dia estranho. Sensação ruim. Sabe aquela sensação ruim que você sente quando percebe que pode controlar o ritmo de sua respiração? Ou quando percebe que sua língua não fica confortável em sua boca? Ah, me desculpe por isso. Eu caí nessa também. Logo a gente esquece. Mas o que importa é a sensação de estranheza, não sei o que é. Parece que percebi minha presença no mundo assim como percebi minha língua na boca, e fiquei desconfortável. De alguma forma parece que está tudo errado.
            Acordei tarde hoje. O sol já enviava seus raios luminosos para dentro do meu quarto, atravessando a falha na cortina e sarcasticamente buscando meus olhos indefesos. Arrastei-me pela cama até a beirada, e estendi o braço apenas para corrigir a falha na cortina e colocar o quebra sol de volta no lugar de onde nunca deveria ter saído. Tic-toc, 07h30min. Os ponteiros avançam impiedosamente, levando com eles o tempo que me resta, como a carretilha de um anzol. A linha esticada é o tempo. De um lado, do meu lado, estou eu, preso à ponta. Do outro, um desconhecido enrola, incessantemente, a linha de volta. Quando ele terminar, serei apenas mais um peixe fora da água, retirado do meu mundo e afastado de tudo que conheci, para provavelmente não conhecer mais nada. Na melhor das hipóteses serei comido assado. Mas ainda me resta muito tempo, ou pelo menos assim espero. Por isso não tenho pressa. Tic-toc, 07h40minh. Levanto-me da cama e me ponho em movimento. Essa coisa toda é como um parque de diversões. Você chega, e encontra velhos sorridentes ao lado de um brinquedo chamado "Rotina". Você se senta no carrinho que segue por trilhos, passando por altos e baixos até chegar ao final. É divertido. Você volta no dia seguinte, no outro, e no próximo, e depois... o brinquedo perde a graça. Existem centenas de outros brinquedos no parque, mas você nunca se utilizou dos mesmos. Tem medo deles. Tem medo de sair do seguro e conhecido "Rotina". Às vezes o trilho muda de linha. Fica divertido de novo. Trajeto novo, coisas novas, surpresas novas. Mas é só às vezes, e cedo ou tarde você acaba retornando para a linha antiga. Às vezes também alguém se habilita a sentar com você no seu carrinho e você tem alguém com quem compartilhar suas emoções. Mas cada um tem seu próprio carrinho, seu próprio trajeto no "Rotina", e elas acabam voltando para seus próprios acentos. É triste. Tic-toc. Enrola a linha. Tic-toc, 08h00min.
                Na rua todos têm pressa. Um motoqueiro passa cortando um carro em alta velocidade, quase bate. Um homem bem vestido, terno cinza, sapatos pretos, carrega uma mala também preta, abandona a elegância e corre para pegar um taxi. Uma mulher negra anda rápido na direção contrária a minha. Podia ser uma bela mulher, olhos verdes delineados, pele lisa. Um sorriso bonito apesar de um tanto quanto amarelado. Mas ela tem a barriga estufada, não sei se está grávida ou se são vermes. Na mão esquerda um maço de jornais - provavelmente não são de hoje - e na direita um copo descartável de café com leite. Os cabelos crespos jogados para cima, presos com um velho arco, sem o menor compromisso com a beleza. Ela não tem isso. Ela tem pressa. Anda descalça, esfolando os pés no asfalto rumo a seu destino misterioso. Pedestres apressados atravessam sinais vermelhos. Um motorista apressado atropela um carteiro também apressado montado em uma bicicleta. As cartas voam da bolsa do carteiro caindo com lentidão, retidas pela resistência do ar. Os destinatários das cartas tem pressa para recebê-las, mas vão ter que esperar. Enquanto isso, nas avenidas, milhares de carros apressados enfrentam a lentidão do trânsito que eles mesmos causam. As pessoas são burras. Transformam soluções em problemas. Colocam-se na correnteza que leva diretamente ao desconhecido do anzol, facilitando seu trabalho. Ele ri. Ri enquanto perdemos tempo na rotina, ri enquanto nadamos em sua direção, e rirá mais ainda quando nos debatermos no fim da linha.
                Tic-Toc. Obrigado senhor, volte sempre. Tic-Toc. Só mais um dia no "Rotina".

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Eu Me Lembro

Eu me lembro. Me lembro do local, da noite, da hora. Lembro-me do cheiro, do clima e do som. À beira lago, céu aberto, noite clara, iluminada pela lua e pelas centenas de estrelas visíveis, fundindo átomos a anos-luz de distância, queimando. A noite estava quente. Uma leve brisa trazia o cheiro da água e só se ouvia o som dos transeuntes distantes. Me lembro do gosto amargo da boca seca e da distância que parecia exorbitante. Me lembro do nervoso, da vergonha, do medo e do coração acelerado. E de repente tudo se desfez, ficou distante. Eu me lembro do perfume doce que sobrepujava o fraco cheiro da água, me lembro da voz, suave, calma e ao mesmo tempo decidida, que tornava o som dos distantes transeuntes ainda mais distante. Me lembro da leve brisa que movia seus longos cabelos negros, fazendo-os cair sobre a face e que com movimentos tímidos eu os levava dalí. Me lembro do toque da pele branca e macia, mais quente que a noite e do brilho nos olhos, delineados, hipnóticos, sedutores, mais intenso que o brilho longínquo das estrelas no firmamento. Um olhar profundo e aconchegante. O lindo sorriso de canto de boca, um convite nos lábios. Me lembro da distância que era curta, e tornou-se nula. Me lembro principalmente do sabor do beijo, um beijo doce, carinhoso, indescritível. Gosto de "quero mais". Me lembro do dito e do não dito, me lembro e sinto. Eu me lembro do brilho, da voz, do sabor, do cheiro, do calor, da hora, da noite, do local. Cada detalhe, como uma fotografia gravada na memória. Eu me lembro dela.



(Publicado originalmente em minha página no Facebook )

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Efeito Dominó

Poderia ter sido um dia normal, como outro qualquer. São 22h53min agora. O celular arremessado contra a parede descansa em frangalhos no chão. Amanhã vou ter que comprar outro e o fogão novo vai ter que esperar mais um mês, assim como a calha do telhado, que se foi durante uma tempestade. Mas que se foda, essa merda tem estado assim há anos mesmo. Eu poderia comprar umas caixas de cerveja e fazer uma puta festa com esse dinheiro, mas estamos no século vinte e um, e na era digital ninguém vive sem um celular. Preciso entrar em contato com alguns clientes e meu chefe precisa me ligar na hora do almoço para garantir que eu passe o resto do dia irritado, não deve haver outro motivo.
            Acordei às cinco e meia da manhã ao som de "Carry on Wayward Son", Kansas, e me coloquei aos afazeres matutinos que precedem a minha ida ao trabalho. Moro na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, no bairro de Campo Grande, a 54,5 quilômetros do centro da cidade, onde trabalho. Realizo o trajeto diariamente a bordo de um ônibus do tipo "frescão", com ar refrigerado, cortinas, poltronas reclináveis e o caralho a quatro. Coloco os óculos escuros para diminuir a claridade das janelas que os outros passageiros teimam em deixar abertas para lerem jornais vagabundos, e vou dormindo ao longo das aproximadas duas horas de viagem, na tentativa de compensar o tempo que não tenho para dormir em casa. Fica difícil fazer isso devido à distância do trabalho e ao curso noturno na faculdade. Antes de pegar o frescão e pôr fim ao intervalo do meu sono, pego um ônibus para o centro de Campo Grande, totalmente oposto ao frescão. Demorado, caro, pequeno e lotado e fodido. Coisas do subúrbio. Eram seis horas da manhã e lá estava eu esperando o ônibus. A manhã estava um pouco fria e ventava forte, talvez chovesse mais tarde - como descobri que aconteceria. Dez minutos depois avistei o tal ônibus dobrando a esquina, e realizei um ritual de conferência de objetos, chaves, carteira, celular. Celular. Foi ai que a coisa começou eu acho. Levei a mão ao bolso e percebi que meu celular - aquele mesmo que agora se encontra destruído em frangalhos no chão - não estava lá. Pensei rápido e para a minha infelicidade resolvi que voltaria em casa para buscá-lo. Não poderia ser tão ruim, me atrasaria no máximo dez minutos, nada que fosse um problema. O resultado foi que passei meia hora esperando outro ônibus e quinze minutos depois estava dormindo no frescão, rumo ao centro da cidade. Acordei com meu celular tocando e, ainda desorientado pelo sono, atendi meu chefe que nem me disse um maldito bom dia.
- Onde você está? - ele perguntou.
- Estou no ônibus, logo estarei ai.
- Você sabe que horas são?
Não fazia a menor idéia. Limpei os olhos cheios de remela, olhei o relógio com a visão embaçada, e identifiquei que já passava das nove e meia da manhã.
- É eu vi. É o trânsito chefe, você sabe como é - sabe porra nenhuma - mas logo estarei ai, fique tranqüilo.
- Ok.
E desligou. Olhei pela janela e ainda estava na Avenida Brasil, a artéria que leva as células trabalhadoras ao coração da cidade, entupida dessa nicotina de carros, ônibus e vans em excesso, um câncer no organismo vivo da cidade, que pensando bem, não passaria de uma massa orgânica amorfa e escrota se fosse realmente viva. O Trânsito permaneceu lento, pra não dizer parado, agravado pela leve chuva que começara a cair. Descobri mais tarde que, além disso, um caminhão havia tombado e congestionado o trânsito. Descobri mais tarde também, conversando com um amigo que faz o mesmo trajeto, que meia hora antes, teria evitado o congestionamento. Isso lembra alguma coisa?
            Cheguei às dez e meia da manhã no trabalho, com cara de sono, e entrei numa discussão com meu chefe, sobre meus atrasos. Confesso que não tenho uma pontualidade muito precisa, mas o que posso fazer? Dependo do maldito trânsito, e a Av. Brasil é uma caixinha de surpresas. Meu chefe não quis saber da história do caminhão, e me deu um ultimato: Se eu chegasse meia hora atrasado a partir daquele dia, estaria demitido. Como não me restavam opções, fui trabalhar normalmente. Reduzi meu tempo de almoço e saí às 19h30min do trabalho, demasiadamente atrasado para a aula. Peguei o trem às 19h46min, e se tudo corresse bem, em meia hora estaria na faculdade. Mas as coisas não correram bem. O Trem quebrou entre duas estações e, a única solução foi descer do mesmo em meio aos trilhos e, embaixo de chuva, andar até a estação mais próxima. Naquela altura do campeonato, atrasado, molhado, e puto, mandei a aula pro caralho e resolvi que iria direto pra casa. Segunda feira é dia de buscar minha namorada, no curso inglês e teria que sair mais cedo da aula mesmo, aproveitaria pra tomar um banho e descansar um pouco. Esperei por meia hora até que outro trem aparecesse, provavelmente devido à obstrução dos trilhos causada pelo trem anterior. A viagem prosseguiu sem problemas durante a meia hora que se seguiu, até ser interrompida novamente devido a “problemas técnicos”. A linha de trem do ramal Santa Cruz atravessa algumas regiões favelizadas da cidade, onde há concentração de criminosos e traficantes, que estão sempre disputando território. Hoje foi dia de disputa em Padre Miguel, e como os confrontos acontecem nas imediações da linha do trem, o mesmo foi forçado a parar e esperar até que todo aquele bando de filho da puta se matasse. Ficamos esperando por vinte minutos no meio do nada, trancados dentro do trem, aguardando o prosseguimento da viagem ou alguma satisfação pela demora. Nenhuma das duas veio, e o trem retornou a estação anterior, liberando os passageiros para irem pra casa da maneira que bem entendessem, e foda-se o dinheiro já gasto na passagem. A essa altura, já não seria nem mesmo possível ir buscar minha namorada no curso, e decidi ligar para avisá-la. Retirei o celular do bolso apenas para descobrir que a bateria havia acabado. Mas que inútil filho de uma puta! Procurei telefones públicos na estação e encontrei dois deles, ambos inúteis. Um deles havia sido vandalizado, o telefone arrancado, sobrando apenas o fio solitário pendendo na cabine e os anúncios de travestis do tipo "quase mulher" colados na mesma. O outro telefone simplesmente não funcionava. Esperei. Minha namorada não. Cheguei em casa ainda a pouco, e tive uma briga com ela, que desligou na minha cara. Atribuí imediatamente a culpa ao celular, e atire-o contra a parede, deixando-o em frangalhos como havia dito anteriormente. Enchi uma taça de vinho, tomei um trago, sentei-me na poltrona e fiz um retrospecto dos eventos. Fui acusado de ser um irresponsável pela minha namorada, após ter ficado horas preso num maldito trem, enquanto bandidos tentavam abrir um segundo cu uns nos outros, estando eu totalmente molhado devido a caminhada pelos trilhos, culpa de um trem avariado, além de ter perdido aula, e ter sido ameaçado de demissão em caso de atraso. Contemplei o celular estraçalhado no chão, e lembrei-me que ele era meu único despertador. Parece que amanhã será um longo dia.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Insônia

01h35min da manhã. Acordei meia hora atrás e desde então não consigo dormir. Tenho insônia. Lá fora as sombras se esticam pela cidade sob a luz incandescente dos postes. Chove forte. As sombras, luzes, postes e tudo mais se tornam bruxuleante aos olhos. Não há relâmpagos, não há trovões. A cidade dorme em silêncio, exceto pelo som das gotas de água atingindo o solo, erodindo-o lentamente. O cheiro de ozônio invade minhas narinas. Cheiro bom. Cheiro de chuva. As gotas investem contra as janelas pelas quais eu observo este cenário. Estou seguro aqui dentro. Seguro da chuva, da noite, do frio. Não há energia elétrica em minha casa, não há luz, apenas a pouca iluminação que entra pela janela formando figuras obscenas e desesperadas nas paredes, como se a própria luz quisesse fugir da chuva, da noite e do frio. Besteira. Viro-me de costas para as janelas, minha sombra se estica no chão da sala. O cômodo dorme em completo silêncio, exceto pelo som fantasmagórico da minha respiração pesada. O ar entra, o ar sai, erodindo meus brônquios, minha traquéia, oxidando cada célula. Coisa boa, coisa ruim. Vou até o mini-bar e me sirvo com uma dose de Uísque Chivas 12 anos, me sento na poltrona, virada para a janela e tomo um trago, esperando que o álcool e o espetáculo hipnótico de luzes e chuva tragam fim à minha insônia. Lá fora os postes piscam, ameaçando a cidade com o vislumbre da completa escuridão. Maldita light! Tomo um trago. Isso ainda vai me matar. O Uísque ainda vai me matar. A insônia ainda vai me matar. O ar ainda vai me matar. Traidor! O vazio, as sombras, a luz, a chuva, os postes, a noite, a cidade, todos ainda vão me matar. Os postes começam a piscar com maior freqüência. Que diabos! A madrugada zoa de mim em código Morse: "Ei, otário! Não consegue dormir? Perdedor! Vem aqui fora que vamos te levar para o sono eterno, seu babaca!". Escuridão. Os postes se apagam de vez. Tomo um trago. O som da chuva se torna mais forte, como uma torcida berrando em um estádio. Fecho os olhos, eles são inúteis agora. Rezo hipocritamente pela graça do sono, enquanto no fundo minha mente vaga por flashbacks do dia, e da vida. Gosto disso. É meu arauto do sono, quando me perderei em meio a torrente de pensamentos e acabarei em um sonho. Começo a relaxar. Sinto o copo de uísque escapando de meus dedos, puxado para baixo pela impiedosa gravidade. Vai quebrar. Foda-se, contanto que eu durma. O som da chuva parece cada vez mais distante, perdendo intensidade em um fade - out lento, sonolento. Au! Au! Susto. Copo no chão. Cachorro filho da puta! Não é meu, não tenho animais de estimação. É do vizinho, velho, e surdo. Deve ser fácil dormir nessas condições. Pensei em ir até lá e acordá-lo apenas para dizer: "Ei, babaca, seu cachorro me acordou.", mas não faria diferença. Estico o braço tateando em busca da garrafa de Chivas, quase a derrubo, e tomo um trago, depositando em seguida a garrafa entre minhas pernas. Um relâmpago corta a escuridão, e a luz invade momentaneamente a sala, como um flash de máquina fotográfica. Deve ser isso. A madrugada zombando de mim novamente, registrando esse momento patético. Um bêbado insone agarrado a uma garrafa de Uísque, sentado em uma poltrona, sozinho em meio a total escuridão. Patético. Percebo que a chuva começa a diminuir e em cerca de vinte minutos – pode ter sido uma hora, não sei - ela cessa totalmente. O silêncio agora é absoluto, assim como a escuridão. Sinto-me uma pedra de gelo imersa em um drinque dos infernos. Um terço de uísque, um terço de escuridão e um terço de silêncio. Insônia é o nome do drinque, servido pelo próprio capeta, que no momento, deve estar dormindo. Só posso esperar que como nos drinques, a pedra de gelo se dilua. Tomo mais um trago e afundo na poltrona, deixando minhas forças se esvaírem e meus pensamentos vagarem soltos. Acho que dessa vez vai funcionar, e funciona. Durmo. Mas tem algo errado, eu sei que estou dormindo. Não consigo mais mexer o corpo, devo ter me entorpecido. Mas não é isso, estou dormindo. Posso sentir. Diabos! Ninguém pode sentir que está dormindo. Ouço meu ronco, começo a me desesperar. Preciso acordar! Tento gritar. Acordo. Estou sentado na cama. Olho o relógio, 03h05min da manhã. Deve ter sido um pesadelo. Escuto a chuva lá fora. O ventilador de teto está desligado, não há energia elétrica em minha casa. Deito-me novamente. Não consigo dormir.