quinta-feira, 2 de agosto de 2012

No Fio da Navalha


A imagem no espelho pouco me agradava. Se por um lado os cabelos incomodavam pelo volume exagerado, cultivado pela preguiça e pelo alcoolismo, a barba falha parecia vegetação do agreste brasileiro: rala, pequena e esporádica. Nada bonito. Foda-se também, não tinha pra que estar bonito. Aliás, quem foi que definiu o que é bonito? Mas o fato é que eu me incomodava. Peguei as chaves, entrei no carro e fui até a barbearia dar um fim aquilo. O ambiente era típico de uma barbearia. Portas de vidro, iluminação abundante, ventilador de teto girando lentamente, bancos em madeira precariamente estofados, ocupados por velhos aposentados e descompromissados, lendo jornais do dia, revistas do mês anterior e conversando sobre assuntos do século passado, apenas aguardando a hora de comprar pão para o café da tarde. Acho que é a única coisa que importa o final, a hora do pão, do jornal, do remédio e da morte. O barbeiro, Sr. Machado, chamado de Seu Machado, estava desocupado. Era um senhor, já no auge dos seus quase setenta anos, estatura baixa, óculos fundo de garrafa, calça cargo e camisa social, barriga colossal, ranzinza embora de poucas palavras, mas extremamente habilidoso na arte do aparo de pelos. Seu Machado me fez um sinal para que eu me sentasse, o que eu fiz cumprimentando-o com aquele aceno de cabeça em sentido positivo, que inclui todas as formalidades possíveis - "Oi, tudo bem?", "Ah, tudo certo também" - em um único gesto. Questionado sobre o corte, disse a Seu Machado que seria "o de sempre". Ele prontamente iniciou o trabalho e, não muito depois, o serviço já estava concluído. Preparava-me para levantar-me quando Seu Machado perguntou:
       - Não quer fazer a barba?
       - Ah não - respondi - não precisa não.
       - Se quiser, faço de graça pra você, o que acha?
Nunca havia feito a barba na barbearia, por mais irônico que essas palavras possam parecer - e nunca tornei a fazer após aquele dia - e de fato, estava uma merda. Pensei, "de graça, qual o problema?" e aceitei a proposta. Seu Machado acenou, chamando alguém, e do corredor surgiu um rapaz que, não demoraria muito, eu descobriria ser o problema. Era um rapaz magricela, esguio, cabelos bem curtos de cor avermelhada. O rosto era marcado com centenas de pequenas manchas típicas nos nascidos ruivos. Era difícil julgar sua idade. Poderia ter pouco mais de vinte anos ou já estar na casa dos quarenta, mas a insegurança e a forma deselegante como a roupa social lhe caía - e elas ficam facilmente deselegantes nos jovens - me fazem acreditar que não chegava aos trinta. Seu Machado me comunicou que ele quem faria o serviço e não vi problema até ser tarde demais, quando Machado começou a orientá-lo e caiu a ficha de que o indivíduo era um aprendiz. O rapaz inclinou minha poltrona e aplicou o creme para barbear em minha face. Afastou-se até o balcão próximo e começou a preparar a navalha para o serviço, substituindo a lâmina por uma lacrada. E então, sem sutileza ou habilidade alguma, a lâmina fria encontrou minha pele pouco abaixo do olho direito e descreveu o primeiro dos incontáveis e intermináveis arcos de corte. O terror começou quando a mente começou a divagar sobre aquela situação. Ali, sentado em uma cadeira inclinada, com uma luz ofuscante sobre os olhos, e a imagem de um homem desconhecido com uma navalha na mão aproximando-a da minha face em movimentos imprecisos e inseguros, a sensação era similar à de estar sobre uma mesa de cirurgia, só que o cirurgião, não tinha a menor ideia do que estava fazendo. Sobre minha pele ligeiramente espinhosa, a lâmina percorria caminhos tortuosos enquanto o rapaz tentava desviar das protuberâncias que certamente causariam sangramento. O rubor e o calor subiam à minha face à medida que o metal raspava repetidamente os mesmos locais, aumentando o desconforto e a tensão. Era interminável. O pior ainda estava por vir, quando o objeto afiado finalmente encontrou meu pescoço. Sobre as rígidas formações da traqueia e do pomo-de-adão, era possível perceber milímetro a milímetro a pressão inconstante exercida pela lâmina. Como era possível se submeter a isso? Ter a vida nas mãos de outro homem por tão pouco. Ter a vida no fio da navalha. Um pequeno erro, um descuido, uma força a mais, um esbarrão, uma picada de inseto, qualquer coisa, e a tragédia seria inevitável. Era como estar sentado à cadeira de Sweeney Todd, o barbeiro demoníaco. Não tardou até que o sangue vertesse através do buraco de uma espinha acidentalmente retalhada e o vermelho preenchesse o branco do creme de barbear, alimentando o devaneio.  A respiração cessou com a sensação de dor imprimida pelo corte, meus punhos se cerraram sobre os braços da cadeira, a mão do barbeiro enrijeceu e a expressão misturada de surpresa e culpa subiu à face do rapaz, moldando-a na cara de quem fez merda.
Aí a voz de Seu Machado voltou a ecoar no recinto, esbravejando, perguntando se o rapaz era médico para arrancar pedaço dos outros, enquanto tomava a ferramenta das mãos do aprendiz para terminar o serviço, o que para mim, foi um alívio. Pouco tempo depois, abandonei a barbearia sob pedidos de desculpas por parte do Sr. Machado, entrei no carro e rumei para casa. No caminho, vi pessoas confiarem suas vidas a motoristas de ônibus, taxistas, pilotos de avião, fabricantes de automóveis, barbeiros. Nunca entendi de verdade esses aspectos das relações sociais da raça humana, essa confiança subconsciente que depositamos no próximo mesmo sabendo que o outro é tão humano quanto nós e, portanto, falho. É incrível como, com um senso de autopreservação tão deturpado, a espécie tenha perpetuado ao longo dos anos. Somos todos suicidas. Estamos todos vivendo no fio da navalha.